Capibaribe In Rock 2024 e a razão de eu odiar sonhar fofo - Rodolfo

Capibaribe In Rock 2024 e a razão de eu odiar sonhar fofo

Aquela minha semana havia começado na saudável perturbação mental ao descobrir, em um texto super bem escrito por Leonardo Sacramento, que, logo na linha fina, trazia: “Filme sobre Rubens Paiva, assassinado pela ditadura, foi realizado por diretor com riqueza familiar atrelada ao regime.” Entre muitas conversas e pontos lá e cá sobre o assunto, minha mente – sem que eu me desse conta – já se aquecia para um final de semana reflexivo, como sugere o texto de Sacramento: observar e entender os contextos*, porque, afinal, não há nada mais instigante de uma mente em desassossego do que os paradoxos da realidade a nossa frente. 

Cantor da Banda: Instituto Darkwave de Música Popular e Regional – 23.11.24 – Foto: Rodolfo

Pois bem, com a chegada do festival Capibaribe In Rock, em sua 27ª edição, realizado agora nos dias 23 e 24 de novembro pelo querido Beto Skin, pensamentos intrusivos me atropelaram. Sentir o mundo num contexto que me atravessou madrugada adentro enquanto assistia aos shows, amanheceu comigo no calor seco de Santa Cruz, acompanhou-me no café, no banho, e não sairia de mim se não fosse a libertação da escrita… Porque também, aparentemente, a lucidez justamente só me visita para escancarar absurdos ao meu redor, sigamos.

Cantora Abna Monteiro apresentando sua nova música de trabalho ‘Sem Pesar’- Foto: Rodolfo

Gosto, já de cara, de dar o spoiler porque amo saber os finais antes do fim (o controle capricorniano prevalece; honro com fervor). Gosto de frustrar a espera – é minha vingança com o mundo. Esse lugar de poder dizer antecipadamente, entregar o ponto final dessa reta tortuosa que termina numa moral previsível: eu odeio sonhar fofo. Nossa, mas eu odeio mesmo, e se o mundo previsível insiste em testar minha paciência, eu insisto em sabotá-lo com spoilers. Agora você sabe, e vai dar nisso: o drama de sonhar fofo numa realidade dura para a cultura local.

Evento de pré-estreia do Filme Iluminação Especial 7.0 e da Websérie Mãos dos Sabores – novembro de 2024. Foto: Rodolfo

Nova leva de artistas em ebulição

Nosso setor cultural no interior está em ebulição. Uma nova geração de consumidores de arte local é estimulada, uma nova leva de artistas é incentivada com investimentos. Mas o setor ainda é mega fragmentado, não se reconhece e nem tem apoio, mas também não se dá o respeito, convenhamos. Uma turma entre técnicos e artistas foi se cansando com o tempo, desgastada de fazer, na tora, a cultura se mover na terra da Sulanca. Penso que aí está o erro: artista não deveria ter que mover a cultura. Artista tem que ser artista, pesquisar, compor, deliciar-se com o encontro de quem aprecia suas artes, pois como se já não bastasse o artista ter que criar, aqui é ele que deve puxar o bonde inteiro. Que prático, algo que vem de nossa cultura industrial de quem costura, monta o banco, e solta o gogó para vender.

A figura emblemática do Capibaribe In Rock em nossa cidade é a personificação dessa ideia: um festival que se ARRASTA sozinho (Beto com Beto mesmo), num espaço escondido, como num porão escuro – quase um útero cultural – que insiste em parir arte, mesmo com a cidade querendo abortá-lo; para meia dúzia de pessoas que buscam encontrar entretenimento, pulso e vida no mundo do rock.

Resistir por tanto tempo diz muito mais dum contexto que torna a cultura um fracasso

O festival brada no seu posicionamento sobre ser resistência. Prova, de novo, que se há resistência, há quem o coloque nesse lugar de precisar resistir. Recorrer a essa pauta de resistência é uma lâmina de dois gumes. Por quê? Porque, ao exaltar bravura, estamos negociando a sobrevivência a troco de um abandono colossal. Resistir é lindo na poesia, mas na prática é um lembrete diário de que estamos sendo ignorados. Por isso eu também odeio a palavra LUTA, mesmo tão necessária, eu quero é mais, e não quero ter que lutar. 

O cansaço com esta mesma resistência é estrutural, poxa vida, quando é que a gente realmente vai curtir o rolê sem tanto perrengue? A imagem das pessoas cansadas, sentadas enquanto os shows rolavam, me deu essa interpretação (a imagem de que tem sempre uma mulher cansada, sentada na beira da calçada, cansada e disposta, ainda inteira, pronta para algo, mas muito cansada) todo mundo vindo insistir com a arte, depois da escala 6 x 1, depois dos serões (horas extras) até tarde. A gente vai por resistência e desiste da dissidência pelo cansaço. É como quando, crianças, passávamos horas montando a fazendinha só para desmanchá-la exaustos da jornada. O prazer cultural é sempre interrompido, porque quem deveria apoiar está mais ocupado promovendo artistas externos, do que a cultura local.

É por isso que a calma nesse lugar não me interessa…

… mesmo que necessária. A tranquilidade me assusta e soa arbitrária. Pergunto-me: por que a indignação parou de mover a arte por estas bandas? É lindo demais enaltecer a história nesse tom frufru, as vezes pedante (sempre mais do mesmo), e é igualmente perturbador comemorar editais que exigem contrapartidas não remuneradas.

Nós precisamos nos levantar dessa calçada esplêndida e contemplativa desse gesto obceno que a classe artística sempre recebe, precisamos de tonos, e um tonos que não será dado ou trazido por minhas palavras isoladas, mas pela consciência da urgência desse levante do setor para agir em si mesmo. Porque, se esperamos que algo venha de fora, seremos calados com as palavras ainda na boca.

Falei com Beto durante a montagem, perguntando se ele não tinha um ou uma assistente de produção para ajudar no festival. Ele respondeu que: “na bacanagem, na parceria e sem remuneração, não seria possível”. Porque, claro, paixão pelo projeto paga contas e enche o estômago, não é mesmo?, o próprio Beto que o diga, tendo que hospedar músicos na sua própria casa. 

20 anos de silêncio não se recuperam com parcimônia

Ainda durante os shows, outra fala me alcançou: sobre os 20 anos que temos, enquanto cidade, desde a criação da lei que institui o Conselho de Cultura – até então inativo e agora indo apenas para seu terceiro ano de existência efetiva. O argumento era: temos que ir aos poucos porque o conselho só tem 3 anos, ainda há muito o que fazer. Ah, claro, 20 anos inativos e agora precisamos ter paciência… quem sabe mais 20 para começarmos a colher os frutos?

Essa fala me inspira urgência e ligeireza, não parcimônia. Inspira ansiedade braba, unhas roídas, frio na barriga. Dói-me o arrepio no cangote ao lembrar que, nesses 20 anos de conselho inativo, o Capibaribe In Rock sequer tem hoje um banner com seu nome no fundo do palco. E a mesma prefeitura só avisou no dia do evento que o equipamento de som estava liberado com “apoio do município”. Porque nada melhor que a agressividade de  ‘apoio’ com a gentileza da última hora, que te deixa à beira do colapso as 10:00 da manhã.

Isso me doeu muito. Vi Beto ali, suando a careca, recebendo artistas, correndo para a emissora de rádio apresentar o programa, ligando para ver quem iria limpar a Arena dos shows. Agora me diga: qual paz deveríamos ter diante de tamanho descaso? Como é possível valorizar a cultura com tudo isso acontecendo diante dos nossos olhos? Como assim esse setor segue tão desmobilizado?

O que nós tem é nós

Já que somos só nós por nós, acredito que não devemos nos apegar ao ritmo de como fazer a cultura acontecer, mas à reparação histórica que tarda em ser feita com a classe artística da cidade. Eu estou ansioso para ver a placa de Avani Lopes de novo nas paredes do auditório municipal e é disso que eu falo. E digo mais: deve ser em ritmo de festa gospel, com urgência e emergência. O que está posto é muito pouco, é muito medíocre, porque a gente não quer só comida. O pouco dessas migalhas é um pouco de mais.

Preciso ir concluindo dizendo que: o que falta é o que me interessa. É o copo meio vazio que me atrai. por que eu e esses artistas, nós somos só o copo meio vazio mesmo. São as faltas que movem o mundo. Que os copos meio cheios desse discurso bajulador da boa vizinhança rachem ao sol do meio-dia, assim como racha minha pele negra toda vez que saio na moto carregando o copo meio vazio para realizar qualquer coisa nesta vida. e também porque é no calor do vazio que nascem revoluções – e não no conforto dos copos do Pinterest.  

E me pergunto:

Onde ficam todas essas questões e atravessamentos imediatamente vividos, inclusive por estes artistas? Até quando vamos ser felizes se iludindo ao dizer que somos artistas nestas condições degradantes de desrespeito que estamos inseridos? Meu deus, por que isso não nos desperta? Como ainda reproduzimos desenhos da caatinga e do pôr do sol, romantizado da seca nordestina, do barro e da sulanca tão fofinha para decorar as casas de quem enxerga arte como um adereço do Pinterest? Sabe gente que pexinxa preço de obra de arte? Valha nossa senhora!

Eu escolho a frustração! Prefiro lidar com algo que não deu certo do que sonhar fofo, baixo, medíocre, com medo de quem já é grande. Eu escolheria suar junto, se pudesse; uma gota de meu suor junto de outras gotas de outros suores. As dores já sentimos. Já estamos no escuro. Ouvi dizer que o fundo do poço é o lugar mais visitado pelos humanos, e nós estamos com medo do quê? Já sabemos como é no calabouço, sabemos lidar com os monstrinhos. O que estamos esperando? Volto a dizer: eu odeio sonhar fofo e se já estamos no fundo do poço, por que não cavar até atear fogo nos alicerces?

Eu quero me inspirar com vocês, mas estou esperando algo injusto de uma geração que ficou 20 anos adormecida. Quem é que vai abrir de novo o mato com um facão? Avante, monas! Sentir fome é como um aviso de que nada pode esperar. O corpo sabe da urgência, e assim deveria ser com a nossa cultura: imediata, pulsante, insaciável. Vocês têm fome de quê?

*Recomendo também o texto do Leonardo Sacramento – toque ou clique aqui

Texto: Rodolfo
Edição de imagens do vídeo: Davis Jofre

Sobre Rodolfo Alves

Sou publicitário que vivo criando conteúdos e ideias, fuçando novidades. Amo a comunicação e estou interessado pela moda no mundo: seja ela nas passarelas de grifes famosas ou nas feiras populares do Brasil.

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