Um sábado infinito nos limites das palavras perversamente

Um sábado infinito nos limites das palavras perversamente aliadas da arte e do mundo

Como ‘gênero, arte e direitos humanos’ desenham o mundo como o sabemos e como podemos reconfigurar sentidos para o fim deste mundo

Uma faca, um bule de louça e uma xícara com chá morno repousando sobre uma mesa marrom escura. A lâmina da faca ainda carregava o brilho da cena anterior, quando arranhou o chão do palco sob a fala de uma travesti

A porcelana dourada, delicada, segura um chá calmante — talvez camomila. Tirei essa foto após o fim da apresentação do espetáculo TRANSversal (da Companhia Artística Avani Lope com Wlater Vitti no roteiro e direção e Clécia Araújo estrelando no palco); quando dediquei meu olhar para o cenário o vi muito bonito, como uma instalação de arte, e pedi autorização da equipe da peça para subir ao palco e fazer alguns registros do cenário.

A peça TRANSversal estreou num espetáculo de ensaio aberto na noite de um sábado, 29 de março de 2025, na sede da União dos Estudantes de Santa Cruz do Capibaribe (UESCC), no Agreste de Pernambuco. O monólogo reflete sobre a violência sofrida por corpos transgêneros e as lutas por direitos em paralelo com suas experiências pessoais, seu desejo de viver e cantar, inclusive sobre suas contradições

UM SÁBADO INTEIRO DE IMERSÃO – o contexto

Na manhã daquele mesmo dia, eu junto com meu melhor amigo, Kevin Hacling –  responsável pela pesquisa de doutorado que influencia este texto –, havia ministrado uma roda de conversa sobre gênero, arte e direitos humanos. Foi um encontro especial, pois se tratava da conclusão da Oficina Trans(Mood)a, uma série de formações em moda, criatividade e pensamento crítico que ocorreu como parte do projeto Retalho Criativo. 

O projeto realizou vários encontros online e presenciais envolvendo temas como  design, briefing, moda circular, moulage, estamparia natural, upcycling, marketing e fotografia. E no nosso último encontro eis que eu e Kevin nos colocamos nesta roda de conversa sobre gênero, arte e direitos humanos; com 8 participantes destas oficinas, dentre elas mulheres trans, pessoas não binárias, pessoas intersexo e desobediêntes de gênero. 

Naquela manhã, iniciamos a conversa a partir do questionamento “Como Cortar o Mundo com Delicadeza?” trazido pelo texto (2020) de Isadora Ravena, artista, travesti e arte educadora em parceria com Lucas Dilacerda, artista e filósofo, ambos formades pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Isadora Ravena e Lucas de Lacerda – 2020

PROPOSTA CRÍTICA – imergir e questionar

Nós propomos as participantes: pensar criticamente os discursos provenientes das palavras “GÊNERO”, “ARTE” e “DIREITOS HUMANOS” – partindo do princípio de que toda palavra carrega um conjunto de discursos e semióticas. 

DIREITOS HUMANOS

Estas palavras por exemplo, carregam um conjunto de discursos ligados à preservação da nacionalidade, que é uma das mais nefastas, nojentas, perigosas, terríveis e aniquiladoras heranças da colonialidade que, pintada de verde e amarelo (ou das cores de outras bandeiras), violenta corpas dissidentes, etnias minoritárias e grupos políticos todos os dias, em vários territórios do globo terrestre até hoje. 

Direitos Humanos carrega também outras noções coloniais como humanidade (que desde o humanismo europeu define bem os corpos e vidas não humanas), paz (todas as corpas desobedientes sabem que vivemos em uma guerra), trabalho (força estratificada pelo capitalismo), progresso (tempo linear capitalista que coloca a salvação e a melhora em um futuro que continue capitalista, no qual haverá mais riqueza, mais desenvolvimento, futuro que não chega e violenta cada vez mais), entre outras palavras que, mesmo que pareçam oferecer uma contrapartida, reforçam modos de vida e relações coloniais.

 PALAVRA “GÊNERO”

Gênero carrega um conjunto de discursos medicalizados, centrados na construção de identidades inteligíveis e passíveis de reconhecimento pelo corpo nacional, neoliberal, corporativo. 

Mesmo tentando fugir, gênero às vezes ainda soa perigosamente binário: tenha um RG, trabalhe em uma empresa, diga quem você é, consiga dizer o que você é, reitere isso na sua vestimenta, no seu documento, compre aquilo que te ajude nessa descrição de si, vote naquilo que te representa: seja reconhecide pelo Estado, pelo capital, pela câmera de reconhecimento facial, pela inteligência artificial, seja viste na televisão, poste na rede social, afirme novamente e, quando esquecer, mesmo que esteja exauste, afirme novamente.

E A “ARTE”

`Arte’ carrega também um conjunto de discursos que são elitistas, que preservam o status quo da história dos colonizadores europeus (renascimento, barroco, etc), da poesia anestesiada, descolorida, embranquecida de pessoas ricas que compõem as bolhas culturais das capitais e cidades do interior do Brasil. 

Preserva inclusive o artista como um observador distante, que exalta sua própria miopia diante do mundo, dos grandes circuitos de arte que a essa altura já estão profundamente implicados com o capitalismo e sua distribuição financeira produtora de desigualdades que vão além do dinheiro, mas da economia de atenção, do capital cultural e de quem já ganha dinheiro com arte há muito mais tempo do que nós.

Naquela manhã nos perguntávamos: 

  • Quais os limites que essas palavras nos impõem à imaginação política? 
  • Que tipo de radicalidade nos é tolhida quando nosso pensamento é anestesiado por um conjunto de estratégias que se apresentam como as únicas possíveis? 
  • Arte, cultura, direitos humanos: palavras que circulam com facilidade em editais, projetos e discursos, mas que, quando tensionadas, revelam seus limites: com quem essas palavras têm se aliado? 
  • Quem elas conseguem proteger, de fato? Afinal: como fabular o impossível? 
  • Como tensionar as linhas que costuram e criam amarras políticas ao invés de recortar retalhos criativos e imaginativos? 
  • Como levar essas palavras à exaustão? Ao limiar? Ao the edge of glory? Ou melhor ao the edge of the unholy?

ANTECIPANDO CONCLUSÕES ANTES DO MEIO DIA

Em alguma medida o fato de estarmos ali já significava algum tipo de aliança política com essa gramática e vocabulário que buscamos questionar. Afinal estas são palavras que circulam facilmente em editais, mesas governamentais, empresas e fundações financiadoras, todas estas instâncias do capitalismo colonial, neoliberal, estado centrado, corporativo, ego-logocentrado, humano-limitante que é o mesmo que ceifa corpas como as nossas – corpas dissidentes de gênero – de um fluxo de imaginação que possa desfazer o mundo como o conhecemos. 

É uma contradição brutal, afinal são estes editais e este tipo de economia da escassez no capitalismo que nos permitem estar ali, conversando sobre aquilo que anseia cortar – com delicadeza – o mundo colonial, capitalista e neo-liberal.

EXPOENTES INSPIRACIONAIS

Na conversa em roda, na roda da conversa, apresentamos, como uma brisa que refresca (ou incendeia mais) as labaredas deste tabuleiro em chamas, um conjunto de artistas e suas respectivas obras que – dentro (fora, e além)  do universo da imaginação radical, do afrofuturismo e da fabulação crítica – nos apresentam ranhuras, possibilidades de arranhar, de laminar, de retalhar, bifurcar, ruir, esburacar, corroer, queimar este mundo como o conhecemos, para que possamos imaginar um outro mundo, um outro futuro ancestral, uma outra coisa (im)possível.

Ao final da conversa, no limiar da roda, percebemos que este futuro impossível não está nas gerações futuras, não está no passado idílico e muito menos no presente anestesiado, complacente. Mas sim em um presente expandido, de um tempo espiralar, que retorna ao futuro e (re)imagina o passado, um presente que se faz aqui agora, mas que é futuristicamente ancestral. 

Com a obra ‘Byxinhas’, de Lyz Paraíso, pensamos sobre o corte das lâminas debaixo das línguas travestis. O que nos trás para os questionamentos de Ravena e Dilacerda (2020):

“Com quais palavras temos nos aliado? Se as palavras nos dão o mundo, que mundo é esse que nos foi dado a conhecer? Quais palavras precisamos esquecer para que outras novas nasçam? Como cortar o léxico gramatical? Esburacar, ruir, corroer, bifurcar, desmoronar a língua […] Questionar como cortar o mundo com delicadeza é questionar como descolonizar falando a língua que nos coloniza. A língua que nos mutila e nos mata, nos doméstica e nos aprisiona. Como cortar a língua do colonizador com a navalha de nossas existências? Precisamos de uma língua afiada como a língua de uma serpente. Afiada e bifurcada. A língua se transforma em lâmina, cortante e cirúrgica. Na ponta da língua há um veneno que contamina e prolifera o ácido que corrói o concreto gramatical. Como descolonizar escrevendo na língua que nos mata? Como descolonizar pensando com a língua que nos coloniza? É entre o dente e a mandíbula que se esconde a lâmina, nos ensinaram as travestis brasileiras desde a segunda metade do século XX. Perguntamos agora: Como cortar o mundo com delicadeza?”

Lyz Parayzo cria com metais, que lembram serras, a exemplo da escultura Bandeira #2 | Foto: Reprodução @parayzo

O texto de Ravena e Dilacerda parece nos propor um desafio, nos lançar uma maldição, um feitiço sem volta: como descolonizar o mundo utilizando a língua do colonizador? Como cortar as palavras direitos humanos, gênero e arte? Como bifurca-las? Envenená-las, intoxicá-las, infectá-las com um vírus monstruoso e vampiresco? Este texto, aliado com a lâmina de Byxinhas que corta o mapa-território do território-mapa nacional, nos parece indicar uma reflexão sobre como fazer isso.

Na obra “Os Peitos que não terei com Perlutan?”, Castiel Vitorino questiona o gênero farmaco-produzido ao vestir próteses feitas de cristais. Um mineral que ao ser colocado na região de seus seios convoca a atenção para uma ancestralidade cósmica, inorgânica, sobre a mineralidade que constitui nossos corpos, e sobre maneiras de existência muito além das poucas possibilidades dos gêneros humanos, centrados em identidades encerradas em suas próprias descrições políticas.

artista: Castiel Vitorino – 2018

Em “Ghost #1: drowning is not a poem but is not not a poem either” (2022), Jota Mombaça propõe uma reflexão sobre o afundamento como gesto poético. Afogar-se não é um poema, mas também não deixa de sê-lo. 

Jota Mombaça – 2022

Ao submergir tecidos pesados em rios de grandes cidades europeias – que, porventura, foram o centro do capitalismo colonial que explorou brutalmente os territórios de povos indígenas de Abya Yala –, e depois pendurá-los e deixá-lo secar e endurecer, a artista convoca fantasmas, presenças e afetos destes rios poluídos que escapam à linguagem, mas ainda assim dizem algo. A obra traz a opacidade daquilo que pode ou não ser lido, sentido, inscrito, transparecido. 

Jota tem se dedicado a pensar criticamente um certo extrativismo da diferença que os mercados capitalistas de arte têm realizado, produzido riqueza por meio e através  de um nível de transparência e representatividade de corpos dissidentes. 

É extrativismo colonial quando as emissoras de TV exigem que corpos pretos reencenem constantemente cenas de violência racista em reality shows, que falem constantemente sobre isso, que pessoas trans reencenem suas mortes precoces, que pessoas LGBTQIAPN+ contem e produzam arte que criem narrativas quase sempre sobre seu sofrimento e precariedade, que drag queens continuem sendo magras, femininas, que soem pop e que reiterem um saudosismo regional estereotipado. 

Estes tipos de ações baseadas em um extrativismo de uma diferença transparente, tem produzido mais uma vez o acúmulo de riquezas, e esta é uma riqueza que não se distribui entre outras pessoas negras, trans, mulheres e LGBTQIAPN+, ou que volte para as comunidades nas quais ocorreram suas vivências e histórias que o mesmo mercado de arte, televisivo, midiático, de economia da representatividade e da visibilidade extraem, produzem e reiteram violências.

RESPIRAR ENQUANTO TAIS PALAVRAS NOS SUFOCA

Naquela manhã, apresentamos obras de artistas que, de alguma forma, têm rasgado essas palavras e costurado outras possibilidades em seus corpos e trabalhos: Jota Mombaça, Castiel Vitorino, Dan Lie, Transälien, Nídia Aranha, Lyz Paraíso e Uýra Sodoma. 

São artistas que fabulam futuros no meio dos escombros, que escrevem com o corpo, que performam com raiva e com ternura. A conversa correu entre imagens, textos e dúvidas. E como sempre acontece numa roda, nem tudo foi dito. Diante das palavras alguns silêncios também dizem e ensinam.

A FOTO A FACA O CORTE 

Voltando a foto da faca ao lado do bule e xícara de chá, tirei essa foto na noite do mesmo dia que começou com essa roda de conversa, em uma sala em que outras pessoas desobedientes de gênero como eu estavam. Quando vi a composição ali, no palco vazio, pensei: talvez seja isso. 

Talvez então seja esta a imagem. Porque cortar o mundo com delicadeza não é suavizar a dor, nem fingir que ela não existe — é colocar a lâmina e o chá na mesma mesa, e sustentar o que há de possível nesse gesto (ChatGPT, adaptado por ciborgue Thales América).

Quando falamos em delicadeza não abandonamos a faca, mas a utilizamos depois de tomar um chá que nossas avós nos ensinaram a tomar.  Foi esta a cena que o público de Santa Cruz do Capibaribe viu naquela noite, pouco antes ou pouco depois de arrastar a faca no chão, a travesti interpretada por Clécia Araújo tomava chá, cantava canções da era de ouro da rádio brasileira e nos falava sobre sua vida e desejo de continuar viva.

Jota Mombaça nos ensina que é necessário sim pegar nas armas – assim como nos aliamos estrategicamente com as noções de gênero, arte, direitos humanos, identidade, representatividade – mas é necessário pegar nas armas querendo soltá-las

Mesmo que bastante alinhado com os subtextos de denúncia da violência e de busca pela representatividade, a peça TRANSversal fazia algo que parecia impossível. A potência do monólogo não habita apenas em sua denúncia crua dos estigmas sociais que atacam mulheres trans, travestis e desobedientes de gênero no Brasil, mas sim naquilo que configura sua impossibilidade: aquele texto sendo aplaudido em uma cidade do interior do Brasil, cidade que produz riqueza em cima de uma tragédia cyberpunk pós-capitalista, na qual impera um sistema brutal de precarização do trabalho e uma tecnologia de extorsão das vidas pelo dinheiro. 

Uma travesti em cena, arranhando o chão com uma faca enquanto falava, cantava e tomava chá em uma delicada louça. Era uma presença impossível naquela cidade. E, no entanto, ACONTECEU.

REPOUSO E RETENÇÃO DO SENTIR

Depois da peça, subi ao palco com a devida autorização para tirar fotos do cenário. E foi então que vi: a faca, agora imóvel, repousava ao lado de um bule de chá e de uma xícara pousada com cuidado sobre um pires. A lâmina e o chá, lado a lado, como se aquela travesti tivesse deixado um recado mudo. Era cena, mas também era vida. Era sobre cortar o mundo com delicadeza (ChatGPT adaptado pela ciborgue Thales América).

Saí do teatro com essa imagem gravada no corpo: a lâmina ao lado do bule. a lâmina ao lado do bule, a lâmina ao lado do bule, a lâmina ao lado do bule. E entendi que talvez seja esse o trabalho — nosso, de quem insiste em fazer arte aqui: sustentar o peso da faca sem deixar o chá esfriar. 

Cortar o mundo com delicadeza não é aliviar o corte, mas escolher onde ele fere, com quem ele se alinha, e o que ele tenta abrir (ChatGPT editado pela ciborgue Thales América).

A abertura do portal rasgada naquele sábado é infinita.

Texto por: Thales Silva de Oliveira (Thales América) Terrorista de Gênero, multiartista. Produtore Cultural. Graduado em Relações Internacionais pela ASCES-UNITA. Mestra em Sociologia pela UFPE. Doutor em Ciências Sociais pela UFCG. 

Revisado por: Kevin Gomes – Rodolfo

Sobre Box Fashion - redação

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